sábado, 28 de junho de 2014

Sapato de Cinderela

Menção Honrosa no Concurso ao Pé da Letra 2014 da Fundação Eny Santa Maria RS

Sua percepção era algo incomum, sua sensibilidade estava sempre aguçada. Sabia onde estava passando, mesmo não enxergando absolutamente nada. Era inteligente, perspicaz, seu grande sonho era conhecer Santa Maria. Cecília era também detalhista, além de ser muito vaidosa. Tanto, que naquela semana, que precedera seus 15 anos, iria a cidade escolher um sapato novo nas Casas Eny (presente dado pelos pais de aniversário). Naquela época, o Fronteira vinha lotado para Santa Maria, já que a cidade era o coração do Rio Grande, berço de estudantes e viajantes e o comércio já era pujante. Alto falante de alguém que parecia também não enxergar, anunciava o paradouro do trem. A loja que iria, era um tanto longe, o que lhe oportunizaria uma caminhada de descobertas. De mãos dadas a sua mãe, percebia que subia uma avenida movimentada, cheia de progresso, ainda que com muitos prédios condenados por obras inacabadas como contava sua mãe, parecia para ela ser uma avenida grande, cheia de prosperidade. Sua mãe caminhava rápido, dizia que tinha que aproveitar a “fugida” na cidade para passar em vários lugares: Na igreja, na Caixa Econômica do Calçadão, na rua do Acampamento, (este último endereço, Cecília pensava ser um local cheio de barracas). Uma “nuvem” de barulho ecoava na avenida, era à saída dos alunos da Escola Industrial Hugo Taylor. Ao passarem na Catedral, além dos sinos que davam boas vindas ao alto, retumbavam barulhentas moedas de alguém que batia um chapéu na escadaria, parecia ser um mudinho, pois não falava, apenas fazia barulho com a boca. Mais adiante, sua mãe encontrou um escritor famoso da cidade, Cecília não sabia o que conversavam, apenas sabia tratar-se de certo Lauro Trevisan, a quem sua mãe agradecia pelos livros. Naquela época, a cidade estava lotada, na medida em que se aproximavam do centro da cidade, o movimento aumentava talvez pelos jogos decisivos de Futebol que havia no Estádio Presidente Vargas, ou ainda, pelos músicos e artistas que estavam se reunindo na Estância do Minuano em um movimento em pró da Música do Rio Grande do Sul e se instalavam no Hotel Jantzen ou apenas para a apreciação do seu restaurante no último andar. Mais adiante, sua mãe fala que estavam passando a frente de um belo casarão, que pertencia ao fundador da Universidade de Santa Maria. Para aumentar sua ansiedade por sapatos novos, uma pausa para o lanche no “Gato Preto” da Galeria Chami, e um bilhete de loteria comprado de um baixinho, que atendia por Paulinho. Finalmente, ao adentrarem a Galeria do Comércio, sua mãe já avistava as Casas Eny S.A Comércio e Indústria de Calçados, que naquela época, tinha como a cor laranja, estampada nos letreiros e nas vitrinas destacando todo seu charme e beleza. Chegando à loja, Cecília sentiu-se importante entre os montões de maravilhas, ainda mais que na oportunidade, a loja estava com grande festividade, com distribuição de brindes, banquetes e a presença de convidados especiais. Cecília tocava e experimentava os sapatos metodicamente, separando-os um a um por detalhes mínimos e cores, perceptíveis apenas por ela, que “enxergava” com a ponta dos dedos. Porém a vendedora abreviou-lhe a delícia da escolha pessoal e apontou lhe o par que lhe era perfeito: Vermelhos, sem cadarço, comprido como um dia santo. A vendedora explicou que estavam na moda, modelo clássico e por isso valiam uma nota, justo o que revelara ter no bolso sua mãe, parte do lucro mensal com a venda de verduras e das gorjetas com entregas de marmitas. Nunca tivera sapatos, só sandálias com solas de pneus, ou alpargatas de cordas que, envelhecidas, desfiavam ficando “barbudas”. Naqueles tempos calçados de couro era luxo, além do impossível. Foi naquela ocasião, nas Casas Eny da Galeria do Comércio, que conhecera o que eram sapatos de verdade. Ainda na loja, a mãe recomendou que pedisse dois números maiores, por causa do crescimento, o que sobrasse no bico preencheria com jornal amassado. Eram sem dúvidas os sapatos dos seus sonhos, desde o formato que deslizava nos seus dedos, ao conforto que lhe proporcionava.  Sua felicidade estava completa. Felicidade apenas interrompida, quando sua mãe disse que não podia ir calçando-os já que teriam uma caminhada longa para pegar o ônibus para visitar sua tia em Júlio de Castilhos e Cecília possuía medo de passar na Garganta do Diabo. Mas nada que abrandasse o brilho daquela data, sem dúvidas o aniversário mais feliz de sua vida, poder “enxergar” a cidade, e ainda, ganhar sapatos novos das Casas Eny.

"Crônica receberá Menção Honrosa do Concurso ao Pé da Letra - Ano III - 2014 da Fundação Eny Santa Maria - RS".







Concurso: http://www.eny.com.br/index.phpMODULO=novidade&COD_NOVIDADE=317